segunda-feira, março 21, 2005

A política do medicamento

Após a tomada de posse do governo socialista, e por ter sido tocado explicitamente, o assunto veio, novamente, à discussão pública.
Infelizmente, neste país, nunca é possível obter toda a informação sobre cada assunto, tal é a parcialidade militante na nossa comunicação social. Todos escrevem em função de determinados interesses, pelo que nunca temos o “filme” completo.

O medicamento é um produto de interesse social.

Na sua política intervêm:

A Indústria Farmacêutica (que o produz)
As Farmácias que o comercializam a retalho.
(existem armazenistas e distribuidores locais entre estes dois intervenientes)
Os Médicos que os prescrevem.
O Governo que o comparticipa.
O Utente que o consome (e paga).

Algumas notas:

Muitos confundem (e isso talvez interesse a alguns) a Industria Farmacêutica com as Farmácias. Até têm estado em barricadas opostas neste processo…

O Governo comparticipa o medicamento a partir dos impostos pagos por todos os contribuintes. A verdade é que se gera, anualmente, um enorme défice que origina uma substancial e crescente dívida ao sector de comércio a retalho (as farmácias).

Estas, também por via disso, salvaguardaram-se, criando a Associação Nacional de Farmácias, que as representa, possuíndo um enorme poder.

A Industria Farmacêutica tem, em Países como Portugal um bom “campo” para a obtenção de lucros. Nos Países mais pobres, não há mercado (riqueza) suficiente. Nos Países mais ricos, as margens são mais estreitas (devido ao peso da utilização dos genéricos). No nosso País, há um mercado razoável e boas margens…

A Indústria Farmaceutica tem, nos médicos, os seus maiores aliados. Muitos (os mais antigos e influentes) estão habituados a obterem benefícios substanciais através de acções a que denominam de "formação". Para além de não implicarem a “perda” de dias de férias anuais na sua prestação pública (hospitais e centros de saúde), ocorrem em paraísos de turismo exótico, em estâncias de neve, na montanha e em zonas onde os campos de golfe proliferam.
Num dos vários dias que ali ficam com a sua família, conseguem encontrar meia hora e participar numa acção conjunta, logo seguida de um jantar retemperador do esforço mental dispendido… Em troca, estão incumbidos, informalmente, de receitar muitos medicamentos daquela multinacional e resistir o mais possível à introdução dos genéricos.
De salientar que, no seu dia a dia, nos Hospitais e Centros de Saúde, os médicos receitam pelo principio activo, aqui, aparentemente, sem qualquer problema…

As Farmácias são um grande e antigo feudo. A sua força vem da união obtida por razões indirectas (protecção contra a dívida do Estado). Trouxe vantagens a muitos. Devemos reconhecer que constitui (a rede de farmácias) a mais moderna e eficaz rede de comércio do País e nada fica a dever ao que existe nos Países mais desenvolvidos. Têm um sistema de informação de extrema valia, com enormes potencialidades, ainda por rentabilizar. Facilmente, o Estado poderia obter, a partir da base de dados da ANF, informação agrupada da prescrição por médico. É por esta razão que os Médicos não “atacam” directamente a Associação pois esta conhece-lhe todos os “podres” e o nível de “resistência” de cada um, individualmente, à prescrição de genéricos.
Entretanto, os Médicos, como “pontas de lança” da Indústria Farmaceutica, utilizam argumentos frágeis, mas suficientes perante os doentes, em posição delicada e de grande dependência, para fugirem à prescrição de genéricos.

As Farmácias são um enorme lobie. Sempre defendido pela sua omnipresente Associação e pela influência que terá sobre quem gere a colossal dívida que o Estado, na sua acção social, tem para com elas.

Mas, vejamos: só pode ser dono de uma farmácia quem for farmacêutico e obtiver (através de um concurso com um curioso sistema de pontuação) um alvará (gratuito) para a abrir. O alvará existe ou é criado em função da população abrangida. Entretanto, esse alvará (que deveria ser um bem público), é vendável, muitas vezes, por milhões de euros…

Passemos ao Estado. Considerando que o medicamento é um produto específico de interesse social relevante, estabeleceu um sistema de comparticipação que abrange uma miríade de medicamentos. O Estado paga uma parte, o utente, outra. Recentemente, o governo cessante introduziu uma medida de cálculo da comparticipação que veio corrigir, de alguma forma, a situação anterior e incentivar a prescrição dos genéricos. A comparticipação deixou de ser cega (sobre o custo do medicamento) e passou a ser um valor fixo, percentual, em relação ao genérico mais barato. Esta medida, muito positiva, fez multiplicar várias vezes o consumo de genéricos, mas conseguiu obter reacções negativas de médicos e “certa” comunicação social (que, com os médicos, participam naquelas suas "formações", assegurando a cobertura mediática dos eventos "científicos").

Finalmente o utente. Como é usual é o mexilhão que sofre com toda esta movimentação. Paga como utente e paga como contribuinte. Para além de, devido à sua doença, ser um interveniente fragilizado, sem capacidade de reacção e muito pouco defendido.

É necessário mudar.
E não é com medidas como as anunciadas que se obtém mudança. Pelo contrário. É com esse tipo de medidas que se consegue que nada mude. Compra-se uma guerra inócua, lança-se areia ao ar, cria-se alguma confusão, põe-se a comunicação social a discutir o “sexo dos anjos” e, no essencial, tudo fica na mesma.

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